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sábado, 25 de agosto de 2012

Fanta uva - último desejo


Eram 3h23 e eu estava andando pela casa, cheia de dor de cabeça, atrás de outro comprimido de Neosaldina.
De vez em quando eu sinto muita dor de cabeça.
Aí, em vez de conseguir deitar e dormir quietinha pra ver se a dor passa, minha cabeça resolve trabalhar dobrado. Penso feito uma alucinada.
Hoje me lembrei de tia Yolanda. Ela devia sentir muitas dores, com aquele ovo enorme que começou a crescer dentro da cabeça dela. Ficou até meio doida!
Não acredito que haja nenhuma coisa parecida dentro da minha, mas dói pra caramba...
Depois de outro comprimido, uma hora deitada, muitos pensamentos e nenhum resultado, resolvi levantar.


São 4 e meia da manhã, lá fora o céu está limpo e lindo, cheio de estrelas.
Um sabiá canta desesperadamente. Odeio sabiás! Eles vivem atrapalhando meu sono.
Pensei no meu pai. Que saudade dele!
Agora ele mora lá na lua e está esperando por mim.

Pensei no Paulo. Quanta coisa ele não viveu!

Pensei que talvez essas coisas devessem ser registradas em cartório, mas eu não vou atrás disso. Vou registrar aqui, onde eu registro tudo que passa pela minha cabeça.
Não sei se alguém vai ler, talvez minha irmã leia e isso já é o suficiente.
Se algum dia eu não puder mais decidir sobre o meu destino, não quero ficar ligada na tomada feito um rádio, não quero ficar cheia de tubos e drogas entrando pelo meu corpo.
Quero morrer dignamente. Não quero que fiquem prolongando nada.
Gostaria, principalmente, que respeitassem meus desejos.

Eu não tenho nenhum medo da morte. Tenho medo do desconhecido! E vou ter que pagar pra ver.
Não há escolha. É a única coisa que eu tenho certeza que vai acontecer comigo um dia. Comecei a morrer na hora que nasci, né?

Também não queria vermes comendo meu corpinho. Gostaria de ser cremada. Isso evitaria duas coisas desagradáveis: um túmulo abandonado e peregrinações a cemitérios.
Provavelmente é isso que vai acontecer comigo, vão me enfiar num caixão e enterrar meu corpo, mas eu não queria isso.
Queria que as cinzas do que restar de mim fossem jogadas perto da Itapuca, em Niterói. Foi ali que eu vi os entardeceres mais lindos da minha vida. Eu nasci naquela terra e queria voltar pra lá quando tudo terminasse.


Queria também que fosse tudo verdade quando dizem que existe vida depois da morte. Queria meu pai me esperando lá, pra segurar a minha mão, por que eu vou estar com muito medo. Eu não sei o que tem lá.


Embora eu tenha me arrependido de cada um deles, eu cometi muitos pecados nessa vida.
Quando me tornei adulta e responsável o suficiente, tenho tentado não pecar mais, mas muitas vezes não dá. Acho que faz parte da natureza humana, da minha natureza talvez.

Gosto dos meus amigos. Tenho poucos, bem poucos, e gostaria de tê-los por perto na hora da partida.
Se não puder me despedir deles, pelo menos gostaria que eles viessem se despedir de mim. Rita, Rosa, Assis, Edmea, Cristina, Ercy, Flávia.
Acho tão triste um velório vazio!
Não quero lágrimas de tristeza, só de saudade.
Não quero flores que vão apodrecer sem que eu possa me livrar delas. Podem me dar as flores agora, enquanto eu ainda posso sentir-lhes o perfume.



Quero que toquem no meu corpo apenas aqueles que me amaram de verdade. Nada de beijos de despedidas daqueles que não me queriam bem. Os que gostarem de mim, afaguem minhas mãos, eu vou precisar dessa força.

Os meus bens. É até engraçado falar dos meus bens... Tudo que eu tenho deve ir pra minha mãe. Ela deve dizer o que ficará pra ela e o que deverá ir pra minha irmã. Não quero minhas coisas com mais ninguém. Meu dinheiro é todo do Paulo. Ele saberá o que fazer com ele e prometeu que cuidaria da minha mãe pra mim. O dinheiro do meu seguro de vida é pra Lily.

Meu precioso e valioso material de artesanato deve ser separado em lotes e vendido. Tem muito dinheiro aqui, investido ao longo dos últimos anos. Não sei quando vai acontecer e pode ser que não tenha tempo suficiente para usá-lo.


Será que tô pedindo demais?
Meu pai queria apenas uma Fanta uva, e eu não pude dar isso pra ele, pois a nutricionista da UTI não permitiu. Consegui levar um suco de uva de caixinha, isso ela deixou. Sei que não é a mesma coisa, mas foi o que eu pude dar pra ele. Consegui que tivesse seu sorriso de volta por alguns minutos e consegui ouví-lo dizer que me amava.


Espero, desesperadamente, que ele tenha me perdoado por não estar ao lado nele naquele momento. Foi o maior erro de avaliação que eu cometi na vida.

 Eu não estou doente, não estou doida, não há nenhum prognóstico sombrio me rondando.
Que eu tenha uma vida longa, enquanto ela puder ser produtiva e feliz.
Se não for assim, não quero mais brincar!



3 comentários:

  1. Olá, Didi!
    Penso como vc sobre a morte e tb quero ser cremada. Tudo o que sobrar, nem ligo para quem irá, não estarei aqui mesmo parA ver!!! rsrsrs
    Também não quero ninguém chorando em cima do meu caixão ou ouvindo aquelas músicas horrorosas, principalmente Segura na mão de Deus. Quero que toque Rock, baixinho, mas que seja Rock!
    Ahhhh, mas enquanto "ela" não chega vamos aproveitando a vida e fazendo outra coisa que temos em comum:o Scrap !!!
    Muitas beijocas para vc e longos anos de vida!
    Com carinho,
    Rê.

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  2. Flor,
    Espero que não tenha um quê de pessimismo e nem de tristeza nestas constatações. Te desejo muitos anos de vida e uma vida cheia de alegria e amor pra dar e receber!
    Mas devo he confessar que admiro pessoas com toda essa determinação e certeza no que quer! Eu não saberia expor tão claramente os meus desejos a cerca da doença, da morte, do desconhecido. Admirável essa coragem e clareza de pensamento.
    Um beijo no seu coração.
    P.S.: Há pessoas que nem existem em nosso mundo real mas que nos dão uma enorme dimensão de como são e de quem são quando se expressam com suas palavras e vc, Didi, me passa seruma pessoa especial, ímpar que a gente adoraria ter por perto e gostaria de trocar vivências e experiências. Que Deus ilumine muito o seu caminho, sempre. Beijos.

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  3. Olá meninas,
    Não há na minha publicação nenhum pessimismo, nada de baixo astral. Apenas saudades e realidade. É preciso ter o pé no chão e a cabeça aberta pra saber que a única certeza da vida é a morte, pois a gente começa a morrer na hora que nasce.
    Eu não possso garantir que terei meus desejos atendidos, mas acredito que tenho o direito e o dever de deixá-los bem claros.
    Ninguém tem que adivianhar, basta ler.
    Obrigada pelo carinho de vocês.

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